domingo, 19 de junho de 2011

Toda Aquela Carne

     - Ela sabe que é gostosa...
     Com essa frase completamente espontânea, e o olhar fixo no rebolado daquela loira, alta e belíssima mulher, ele introduziu a conversa com um desconhecido, tão estarrecido quanto ele com a majestade com que ela rebolava sobre aqueles altíssimos saltos. Ela fazia de uma simples caminhada um espetáculo.
     - Ela poderia ser modelo... - disse o estranho, ao que emendou - se modelo tivesse carne...
     Essa resposta, de algum modo, o surpreendeu, tirando-o do torpor. Mas é verdade, ela parecia desfilar. Não do modo afetado das passarelas, mas desfilava, em clara exibição de seus espetaculares atributos físicos. Sobre a questão da carne, alvo do seu susto, sua preocupação se diluiu. Aquele filósofo popular, seu interlocutor, notara a carne como um atributo, uma propriedade, não uma definição da mulher. Em outras palavras, ele não a tratou como um pedaço de carne, como muitas se queixariam, mas como uma mulher que anda belissimamente, e que é dotada de bastante carne. Talvez, seu pecado, mais do que o machismo de que seria acusado por muitas feministas, tenha sido, no velho dilema da forma e do conteúdo, ter se concentrado no conteúdo errado, induzido por daquelas formas perturbantes.

     O tempo correu, mas aquela cena hipnotizante não lhe saiu da cabeça. Aquela mulher desfilando diante de si lhe dera a dimensão de sua pequenez neste universo injusto em que essas mulheres só te pertencem se você está dormindo. E ainda assim, nem sempre. E assim, muitas belas mulheres passaram diante dele, naquele dia, mas nenhuma estivera à altura daquela que o surpreendera. Nenhuma à sua altura? Mais que isso, nenhuma que chegasse aos seus pés, calcados sobre aqueles saltos vermelhos, a modelar suas carnudas batatas das pernas.
     Ele se surpreendeu ao pensar na dimensão culinária de sua observação. Batatas, carne... carnudas! Lembrar do comentário que ouvira foi inevitável, obra formidável e terrível do acaso de as palavras se encaixarem tão bem. Sim, acima daqueles tornozelos muito bem torneados, havia batatas carnudas, havia coxas muito carnudas, havia... muita carne em partes de sua anatomia que despertam a adoração de muitos homens, sem dúvida. Muita carne, sempre bem distribuída, cada pedaço em seu devido lugar. Ele já suava frio só de pensar.

     Mas não eram apenas as glândulas de sua pele que se puseram a trabalhar, pensar em tanta carne já lhe dava água na boca. Passou a observar nas mulheres que passavam, de início com o tom jocoso do descrédito, e depois até assustado com o rumo a que tudo isso lhe levava, quais carnes eram mais macias, ou mais firmes, consistentes... Mais parecia que queria separar o que iria para um churrasco ou para um cozido. E terminou por se imaginar em um ato pleno de antropofagia, comendo as mulheres, claro, no sentido literal, e começou a entrar em pânico, pois não queria pensar deste modo das mulheres que ele admirava tanto e nada mais parecia normal porque ele via as mulheres passarem e sentia uma fome horrenda que nada parecia capaz de saciar nem mesmo quando ele comia qualquer coisa como aquela maçã que ele robou da banca da feira para enganar a fome enquanto corria para longe das mulheres que via mas nada disso adiantava e parecia que ele não iria resistir e acabaria tirando um pedaço de alguma a qualquer momento e agora já nem fazia questão de assar ou cozir porque tudo parecia muito bom do jeito que estava e...

     Oi? Ah, me desculpe. Sim, tá bom, vou falar devagar. Afinal, a nóia é dele, não minha, não é mesmo?

     Mas o fato é que ele já mal se continha. Desejava as mulheres de modo que jamais antes desejara. Literalmente. E isso era algo difícil de lidar, o novo. Contra a sua vontade, planejava a caça, capturas diversas, imaginava momentos de deleite insuplantáveis pela razão. Vitimado inconteste de sua confusa condição, a um passo de dar o bote sobre uma belíssima adolescente, lançou-se de sobre a ponte, e jamais voltou a ser visto.
     Dentro de uma semana, no entanto, passou-se a registrar nos cadernos policiais daquela pacata região, quase que semanalmente, o desaparecimento de mulheres, entre dezesseis e vinte e oito anos, em geral. O filósofo popular que deu início às tais perigosas divagações jamais desconfiou de sua participação em tais crimes, e a loira charmosa, que sabia que é gostosa, justamente por isso, deu o fora dali. Era loira, mas não se limitava ao estereótipo, e sabia que era uma vítima potencial. Partiu dali para muito longe, aquela que era, talvez, o único antídoto: se ela não fosse tão gostosa quanto julgara, talvez ele perdesse o gosto pela coisa. Ou não?


Pablo de Araújo Gomes, junho de 2011