sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Crônica Atravessada

     Enviaram-me uma breve provocação, citando um estudioso francês que muito teria se interessado pela literatura eminentemente brasileira. O pedido para que eu me pronunciasse a respeito me pareceu bastante digno de atenção. O que não sei é se minha pronúncia será digna da solicitação...

     É bem verdade. Ferdinand Denis apaixonou-se pelo Brasil, em uma viagem que fez à América do Sul, e passou a se interessar por tudo o que se relacionava com nosso país. Por mais de sessenta anos, para se ter idéia, escreveu inúmeros títulos, incansavelmente, sobre o nosso país.

     Ferdinand nasceu em fins do século XVIII, exatamente na época do ano em que o então jovem general Napoleão Bonaparte investia contra o Egito e vencia a lendária Batalha das Pirâmides. Em outras palavras, a Revolução Francesa estava se consolidando, com o controle dos conflitos internos e das guerras em que a França estava envolvida. Isto, logo após o período conhecido como o Século das Luzes, que teve fim nove anos antes, com o início da própria revolução. Conforme deveria acontecer, ele foi um homem de seu tempo, afinado com as mais avançadas teorias da sua época. Da sua época, eu disse. Há muita coisa, que, há muito tempo, já foi desbancada.

     Mas vamos por partes, como nos ensina o método. Ferdinand Denis de fato registrou muita coisa, não apenas sobre nossa literatura, como sobre nossa história, costumes, e sobre a nossa gente. Livros didáticos por ele escritos (lá, da França) foram adotados aqui em nossas escolas, durante o Segundo Império. Recebeu duas comendas imperiais por sua contribuição ao estudo da história e cultura brasileiras. E jamais vou desbotar seus méritos. Ele era realmente apaixonado pelo Brasil, e muito bem intencionado. Mas, estava enganado em muito do que disse.

     A começar com as teorias sobre as qual se fundava seu pensamento. A primeira, a Teoria dos Climas, de Montesquieu, foi, por definitivo, superada, no século XX. O Sociólogo Pierre Bordieu foi um dos que demonstraram que era mais um mito revestido de caráter científico, como tantos outros.

     E nem precisávamos esperar tanto, se usássemos a lógica. A Teoria dos Climas propugna, em resumo, o seguinte: que os povos do hemisfério norte do planeta terra, por viver em clima temperado, habitualmente mais frio, força mais freqüentemente a contração dos músculos (por conta do próprio frio), e assim se gera um caráter mais disposto e trabalhador; ao passo que os habitantes do hemisfério sul, por viverem predominantemente entre os trópicos, num clima mais quente, crescem relaxados, lentos e preguiçosos, formando-se um caráter claramente indolente. O que há de errado nesta teoria? Comecemos do começo: onde estiveram as primeiras grandes civilizações? No crescente fértil. Onde fica o crescente fértil? Nos pólos? Tudo bem, que apenas o Alto Egito ficava entre os trópicos, mas, ninguém pode dizer que qualquer das primeiras grandes civilizações estivesse sob clima fresco e ameno. Egito, Mesopotâmia e os demais povoados desta região, passando pela área da Palestina, viviam em oásis, o que é certo. Mas, por definição, Oásis ficam no meio do deserto. Era quente. E a disciplina invejável e incansável dos orientais também é presente entre os trópicos, não apenas na região temperada. A suposta indolência é muito mais cultural e de índole. Ou pretende me dizer que não há playboys na Europa? No mais, estou louco por uma oportunidade de ler os escritos de Bordieu, para saber como ele desmanchou esta teoria tosca que ajudou a fundamentar inúmeros preconceitos no decorrer da história.

     Denis também defendia o uso do índio como meio de termos os nossos próprios heróis nacionais. Mas, parecia indiferente ao fato de que o índio de nossa literatura não era um índio, mas um cavaleiro medieval travestido de índio. Isto, na realidade, jamais valorizou o índio, de verdade, porque não era o nosso índio quem tinha aqueles valores. No fundo, tanto endeusar como demonizar termina fazendo mal, de alguma maneira.

     Ele defendia, também, que, devido à natureza preguiçosa e indolente do povo brasileiro, nossa produção literária deveria investir mais em descrições, porque nos exigiria menos esforço. E, como a natureza e as cores dos trópicos são exóticas e exuberantes, esta seria, também, a melhor maneira de se prender a atenção dos leitores europeus.

     Ora, que se dane a suposta natureza preguiçosa e indolente! O brasileiro tem essa fama, não é? Mas, pesquisas da Organização Internacional do Trabalho indicam que o povo brasileiro, entre os Estados Democráticos de Direito, é um dos que mais trabalha, no mundo. No japão, antes de a crise internacional expulsar os brasileiros de lá, nossos conterrâneos eram os prediletos das empresas. Não é que o japonês nato não trabalhasse. Sair mais cedo é uma vergonha, então, eles fazem serão até mais tarde, tomando um cafezinho, ou um chá, e conversando. O serão do brasileiro é trabalhando.

     E, se a capacidade intelectual do brasileiro não fosse boa, mesmo, não teríamos inúmeros profissionais de referência no Vale do Silício, ou na NASA, por exemplo. Nossas mentes brilhantes evadem-se de sua pátria, como que despidos de qualquer sentimento nacional, mas porque as melhores oportunidades ainda estão no exterior. Se assim não fosse, e nossa educação efetivamente contribuísse para o aproveitamento dos talentos que despontam em nosso país - não o digo por patriotismo, que não é o meu forte -, com certeza, o Brasil teria um destaque maior no mundo. Aliás, isto vale para o Brasil, e para os países africanos, também. E os países pobres da Ásia, ou nossos vizinhos das américas. Por que Cuba se destaca em tantas modalidades? Saúde, educação, literatura, música, etc. Primeiro, porque valorizam sua educação. Segundo, porque fecharam as portas para a evasão de divisas intelectuais. Não estou concordando com os métodos de Cuba ao falar do fechar as portas como vantagem. Mas, não se pode negar que, para a coletividade, a medida ajuda, e muito, o país.

     E, tem mais. Não temos que agradar o público europeu, ou qualquer outro, para sermos bons. Nosso aprimoramento, o lapidar de nossa arte deve ser feito sobre nossas características próprias, agradar a nós mesmos, como público. Não proponho que nos fechemos, ou que não deixemos vir de fora, ou sair o que é nosso. Mas, como poderemos fazer algo genuinamente nosso, se obedecemos a padrões e opiniões alienígenas? Não. Influência de fora é possível, porque cultura e estímulos externos enriquecem a capacidade criativa. Mas, se você tem uma cultura própria, e ela lhe agrada, use-a. No Brasil, há uma cultura riquíssima que muito tem se perdido, que é a dos bons e velhos contadores de estórias. Isto é uma arte, e é narrativo, não descritivo. Na formação de nosso país, também, vieram muitos poetas medievais, e seus descendentes, isolados em regiões afastadas ou até inóspitas, eternizaram o gênero de seus antepassados. Tudo isso e muito mais compõe a riqueza e o caminho das pedras que nos pode conferir alguma identidade. Se fizermos bem feito, terminaremos por atrair os olhos do mundo, de qualquer maneira. E será muito melhor, porque agradaremos com algo nosso, e não por tentar agradar.

     Mas, nem tudo são espinhos. Denis também afirmava que o povo brasileiro é muito criativo. Ele já via isto naqueles tempos, e é algo que nós não perdemos. Não é bem por ser algo elogioso, mas admito que ele acertou. Como disse, ele estava enganado sobre muitas coisas. Mas não foi à toa que ele se apaixonou.


Pablo de Araújo Gomes, 19 de fevereiro de 2010

O Complexo Simplício

     Seu nome é Simplício Pessoa. Para os que o conhecem, isto é uma piada. Simplício é boa gente, uma pessoa tranquila como ninguém. Mas, de simples, não tem nada! Ele não se incomoda com isso, claro. Não se incomoda com nada - o dalai lama se irritaria mais facilmente do que Simplício Pessoa. Habilidade, que talvez tenha aprendido ao conviver com o seu irmão gêmeo, o Silvestre. Mas aguardar que ele tome qualquer decisão pode ser um verdadeiro suplício. Jamais faça isso, sobretudo se tiver pressa! Não permita que ele tenha duas ou mais opções, pois ele não decidirá enquanto não houver realizado uma completa análise de cada mínima variável ou fator envolvido. E ele não estará nem aí para a sua pressa. Ele não conhece o significado da palavra aborrecimento.

     Você pode até duvidar, mas Simplício se gaba de fazer sempre a escolha certa. Também, pudera. Pensando tanto, assim, dói fazer a escolha errada. Às vezes, no entanto, o preço parece alto. Sua última decisão foi tomada sob a pressão e os olhares incrédulos de sua mais recente namorada. Ela impôs a sua sentença: "Ou o cigarro, ou eu!". E ainda se aborreceu, como se não conhecesse o Simplício. É claro que ele demorou uma eternidade para responder, e cada minuto a fez avermelhar-se mais de raiva. Quando ela estava já roxa, ele ofereceu o seu veredicto: se ela quisesse fazê-lo parar de fumar para o bem dele, ou seja, pensando nele, é porque o amava, e não o deixaria, no caso de ele não parar de fumar; já se a tentativa fosse para satisfazer alguma necessidade pessoal, ou, pior, ao próprio ego, ela não mereceria tal sacrifício. Em outras palavras, disse-lhe que não poderia largar o cigarro por uma pessoa que se declarava disposta a abandoná-lo.

     Tudo bem, Simplício. Certo, mais uma vez. Mas, ela o largou, sem mais, após deduzir que ele optara pelo cigarro. Mas o seu argumento não afirmava que ele continuaria fumando. Enquanto ponderava, percebeu que fumar não tinha sido uma decisão, mas uma imposição que lhe haviam feito na juventude. Ele, como sempre que pensa, tomou a decisão acertada: largou o cigarro, e nunca mais fumou. A namorada? Ela bem que quis voltar, mas ele viu que, como ele suspeitava, ela não o queria tanto quanto ele achava que merecia ser querido. Nem se aborreceu.

     A vida para Simplício é assim. Uma constante partida de xadrez. Você sacrifica a rainha para salvar o seu rei, e faz um xeque-mate com o peão. Cada escolha tem um fundamento, e nada é simples, nem óbvio. Pense bem, sem se deixar levar pela emoção, e você fará a escolha certa. Este é o lema do complexo Simplício.


Pablo de Araújo Gomes, 20 de Janeiro de 2010

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O Difícil Caso de Amor entre Gui e seu Andróide

  Gui.
  Todo mundo conhece Gui.
  É um cara sociável, calmo, tranqüilo. Gui é um sujeito da paz, como se diz por aí. Mas, há alguns dias, tem feito loucuras, como ninguém jamais imaginou que ele fosse capaz. Tudo por amor, lhes asseguro! Tudo por amor.
  Corre, aliás, pela cidade, o boato de que ele acaba de ser internado num hospício. Ou num asilo psiquiático, como alguns têm preferido chamar. Bem, seja asilo, sanatório, clínica psiquiátrica ou hospício, bom auspício não é para o pobre Gui, ser interrado num local como este, já que isto somente vem a agravar a causa de sua suposta loucura.

  Todo este drama começa, senhores, na quinzena passada. O pai de Gui, desejoso de lhe dar um presente de aniversário sem precedentes, deu-lhe Angina_Nº1, a última novidade em robótica e produção de andróides, com aparência extremamente fiel à humana. O modelo recebeu este nome porque, apesar do avanço da tecnologia, andróides ainda são, naturalmente, pesados, e, numa fase inicial dos testes o então não-nomeado robô caiu sobre o seu criador, deixando-o preso sob todo o seu peso. No lançamento oficial do modelo, ele chegou a declarar: "Este andróide é de tirar o ar, vocês vão ver!"
  De tirar o ar, mesmo. O riquíssimo pai de Gui quase desistiu, ao saber o preço. Mas, seu filho havia passado no vestibular, e já tinha um carro. O que lhe dar de presente. "Nada!", disse a mãe do rapaz, "Ele não fez mais do que sua obrigação!". Mas não seria o pai de Gui, se não lhe desse algo. Não sabia o quanto se arrependeria por tomar uma decisão tão temerária!
     Ao ver Angina, foi exatamente isso que Gui sentiu. Sentiu apertar-lhe o peito, faltar o ar. Seu coração quase parou de bater. Foi amor à primeira vista. Quando seu pai lhe disse que aquela moça não era tímida, mas um robô desligado, já era tarde demais. Gui, encantado que estava, já não tinha ouvidos para mais nada. Agradeceu o presente, e a levou para o quarto. Carregou sua bateria na tomada do ventilador, e a ligou. Por algum descuido, talvez, levou um choque, em algum lugar. Teve certeza de que Angina é uma garota chocante, e começou a rir. Programada a aprender com as reações humanas, Angina reproduziu seu gesto, rindo às gargalhadas. Gui sentiu no ar um agradável clima de cumplicidade. Ela era, mesmo, encantadora.
     Olhando direito, para Angina, com aquele olhar já apaixonado, Gui não podia acreditar. Ela o observava com a mesma expressão. Talvez, fosse apenas porque é programada a aprender com os humanos, claro. Seu pai já lhe alertara a respeito. Mas ele teve a clara convicção de que ela lhe retribuía o amor que ele por ela sentia. Levou-a para apresentá-la ao pai, que a cumprimentou, friamente, tão-somente para programá-la. Gui ficou sentido. Angina não sabia exatamente qual dos dois deveria imitar: o seu dono ou aquele que com ela interagia. Pela primeira e última vez em sua "vida", se é que assim se pode chamar sua existência funcional, ela escolheu pelo critério da interação. Isso não viria a se repetir, porque os seus sensores detectaram a grande insatisfação e Gui.
     Talvez fosse melhor com sua mãe. "Mãe, esta é Angina.". Com desdém, a genitora olhou de lado, e não deu atenção ao androide. "Mãe?", "O que é, meu filho?", "Esta é Angina". Silêncio. "Mãe?", "O que é que você quer? Que eu converse com um robô?". Angina, definitivamente, programaria sérias restrições a apresentações e cumprimentos.
     E, assim, Gui teve o cuidado de ensinar tudo o que podia a sua amada. Ensinada sobre seu universo particular, ela parecia pronta para ser apresentada aos seus amigos. Alguns a acharam muito fria. No sentido de comportamento, claro. O funcionamento dos circuitos e mecanismos a mantinha agradavelmente aquecida. Poucos de fato notaram se tratar de um andróide. Muito sensuraram Gui, porque ele a apresentava como sua namorada! Os demais afirmavam que ela parecia ter sido feita para ele. Ele não negava de todo tal afirmação, pois ela fora, mesmo, feita sob encomenda. Toda a produção era feita sob encomenda, e com aparência personalizada. O pai de Gui usou critérios próprios para definir como ela seria, mas teve o cuidado de acrescentar detalhes que conhecia sobre a opinião do filho.
     Mas, certa vez, caiu uma chuva. Angina suportava chuvas, e o contato moderado com água, sem problemas. Mas a chuva foi muito intensa. "A precipitação do dia superou em muito os milímetros esperados para todo o mês", declararam os meteorologistas. E Angina não estava pronta para ter água acima de sua sinuosa cintura. Vazou água para dentro de Angina, e os circuitos pifaram. Sem poder se defender, e muito pesada para ser protegida por Gui, ela foi arrastada pela correnteza. Gui culpou os céus por sua perda, como costuma fazer quem perde o grande amor de sua vida. Buscou por ela em toda a parte, mas era tarde. Ele ficou inconsolável.
     Após semanas, ela foi encontrada em um mangue, próximo do encontro do rio com o mar.
     Gui não pensou duas vezes: foi ao encontro de sua amada! Ela estava muito danificada. Seu pai pensou que talvez fosse melhor, que talvez isto desfizesse o encanto. Mas o verdadeiro amor é incondicional. Gui a levou para a fábrica, para ser reconstituída. Declararam perda total, e ofereceram-se para construir uma nova. Gui perguntou se trocariam o amor de suas vidas por outra, somente porque ela estava em coma. O agrumento foi forte, pois um dos cientistas responsáveis pela criação tinha uma esposa em coma havia dois meses. Mas, claro, argumentaram que ela era um robô, um objeto, algo plenamente substituível. Arrependeram-se pelo dia em que nasceram.
     Indignado, Gui saiu pelo mundo para encontrar algum cientista disposto a encarar o desafio de "ressuscitar" Angina. Mas sua tecnologia era muito avançada. Algumas empresas concorrentes ainda pediram para analisá-la, com o objetivo não declarado de estudar a possibilidade de entrar no mercado com um produto concorrente. Mas não puderam compreender exatamente todos os seus inovadores mecanismos.
     Após meses, Gui já não comia, não saía de seu quarto, não se banhava, não se cuidava. Queria morrer com Angina em seus braços. Bem, na verdade, Angina era muito pesada, então ele queria morrer nos braços de Angina.
     No auge de seu desespero, os pais de Gui o internaram numa clínica. Como se recusa a comer, ficou no soro. Como queria sempre retirar o soro, permanece dopado. Mas em seu olhar distante não parece perder de vista o sonho de encontrar Angina, viva e funcionando bem, para que ela acabe com sua dura dor no coração.

Pablo de Araújo Gomes, 12 de fevereiro de 2010

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Inferno de Cada Um - II

     - AAAAAAAAAAAHHH!!
     Ouviu-se aquele grito ecoar por segundos, ainda, após ser proferido. E aquele grito de desespero não cessou, internamente, quando ela perdeu o restinho de seu fôlego. O que seria aquilo? Sentiu-se uma monstra, ao olhar no espelho. Que coisa horrível! Horrenda! Era... era... uma espinha!
     Procurou, inutilmente, o seu creme para espinhas, mas não o encontrou. Tentou espremer aquela medonha -e nojenta - bola de pus, não importava o quanto lhe doesse. E doeu. Doeria ainda mais se fosse vista daquele jeito. Mas não é possível! Quanto mais ela mexia, mais a espinha crescia. Num dado momento, crescera tanto, tão vermelha e inchada, que sua pele não pôde suportar a pressão. Estourou. Ela conseguira o que queria. Estava nojento, todo aquele pus, mas ela o lavava, e...
     - AAAAAAAAAAAAAHHHH!!
     No lugar da espinha, havia outra. igualzinha àquela. Só podia ser um pesadelo! Gabava-se de nunca ter tido espinhas, mesmo durante os piores momentos da puberdade e adolescência. Já distratara colegas feias, ou as belas que se surpreendiam com espinhas "horrendas" na face. Não que as tenha tratado mal, de fato, mas o seu ar de superioridade era notável e irritante. Ela sabia que era a garota mais bela, aonde quer que fosse, e os meninos sempre babavam por ela. Inclusive os mais belos.
     Mas, agora se sentia uma criatura mítica, um ogro, talvez! AQUELA espinha era a maior e mais horrenda que já vira. em toda a vida. Tinha que sair do banheiro. Resolveu ligar para a farmácia. Pôs a mão no rosto, com vergonha não se sabe de quem, e saiu pela porta do banheiro.
     Estaria ela enlouquecendo? Cruzando o portal, ela voltava ao banheiro, como se viesse de fora. Voltou, e percebeu que entrava, novamente, no banheiro. Voltou, e não saía do banheiro, como houvesse um banheiro idêntico ao seu, de cada lado da porta. Ela choraria de desespero, se não soubesse que isto a envelhecia tanto.
     Respirou fundo. Resolveu dar continuidade ao seu ritual diário de beleza. Cremes, massagens faciais, tudo precisava ser feito, ainda. Pegou seu creme anti-envelhecimento. Aquele era o seu predileto. Milagroso, e combatia seu maior terror, desde que entrou para a terrível e temida casa dos trinta e poucos anos. Aplicou, cuidadosamente, fechando os olhos, para tentar abstrair a inconveniente espinha. Mas, algo estranho quis lhe abrir os olhos. A textura de sua pele mudara e, ela resistiu a abri-los. Para seu total pânico os olhos denunciaram seu mais triste pesadelo. Ressoou mais um grito de desespero.
     Onde ela houvera passado o creme, sua pele envelhecera décadas, em segundos. Enrugara a pele, ressecara a tez de sua bela face. Não pareceria mais nova de que a sua própria avó, com mais de oitenta anos de idade. Idade, aliás, que dispensava alcançar, se porventura não pudesse evitar a aparência que tomava por degenerada. Não podia piorar. Não havia como.
     Mas, piorou! No lugar da espinha, o pior estigma da feiúra. O maior terror de seus pesadelos mais íntimos, a única coisa que seria capaz de superar uma espinha: uma grande e destacada verruga! Era, definitivamente, pior do que a morte! E tinha, até, cabelo! tentou arrancar o cabelo com a pinça. Pegou uma lâmina, para removê-la, mas temeu que lhe acontecesse algo pior à sua face, já deformada.
     Pensou, novamente, no que pensara anteriormente. Era pior do que a morte. Sim, era isso! Percebeu que este pensamento não lhe viera à toa. Compreendia, então, que tudo só poderia ser um castigo. Olhou para a porta do banheiro, e finalmente viu o seu quarto, apinhado de gente. Não teve coragem de cruzar a porta, embora sentisse que poderia sair do quarto. O seu temor era ser vista pelos presentes, naquele estado.
     O que tanto fotografavam, aqueles jornalistas intrometidos? O que poderia haver de tão interessante em sua cama? Algum comentou, jocosamente, que poderiam vender as imagens para Hollywood, para os filmes de terror voltarem a assustar alguém. Outro o sensurava, porque não estariam em local ou ocasião para brincadeiras. Não haveria ocasião mais inconveniente, mesmo. Ela pedira por aquele triste fim, mas, após a morte, merecia um pingo de respeito que se lhe pudesse dar.
     Ela não resistiu. Cobriu a face, e entrou no quarto, onde viu que, realmente, havia algo sobre a cama. Abafou um grito, para não chamar atenção para si, ao reconhecer sua camisola rasgada, que exibia um corpo deformado sobre a cama. Havia alguém, cuja identidade resistia em reconhecer, ou aceitar a identidade que lhe atribuía. Mas não podia mentir para si, mesma. Começava a entender. Ninguém a veria, simplesmente, porque ela não estava ali. Estava morta. E, muito pior do que ela, estava o seu corpo, sobre a cama, o corpo deformado, a face disforme, irreconhecível, realmente dignos de filmes de terror. Ouvia aqui e ali. Houvera sido vítima de um crime passional.
     Sabia que não deveria ter confiado naquele homem, mas ele era tão lindo. E o homem mais lindo era o adorno perfeito para a mais bela mulher da cidade. As mulheres, com certeza a invejavam, quando ela desfilava com ele a tiracolo. Certamente, não mais invejariam, agora. Sentiu alguma pitada de vergonha. Não conteria mais o choro, neste momento não houvesse percebido que, enquanto parecia estar invisível a todos os presentes, um rapaz encostado na porta do quarto a observava.
     Como ele era feio! Causava-lhe asco somente a visão daquele arremedo de homem, que não tirava os olhos dela. Com um sutil gesto, como se pudessem ser vistos por mais alguém, ele a chamou para si. Não podendo recorrer a mais ninguém, ela resistiu a seu nojo, e andou em sua direção. Pensava todo o tipo de interjeições, ao olhar aquele rosto estranho.
     - Você, por acaso, já se viu no espelho, para estar me julgando assim?
     Ela ficou estatelada. Ele lera seus pensamentos? Ou será que sua expressão de nojo era tão clara, que transparecia seus pensamentos?
     - O que?
     - Quer sua vidinha tola de volta?
     Ela ficou séria. Parecia uma espécie de brincadeira de mal gosto. Mas ele permanecia sério, diante dela.
     - Você pode fazer isso?
     - Ainda está em tempo de reverter tudo.
     - VOCÊ - e destacou cada sílaba de sua frase - pode fazer isso?
     - Se VOCÊ fizer um trato comigo.
     - Qualquer coisa!
     - Tenha calma. Vou fazer de conta que não ouvi. Não se comprometa antes de saber o preço do que almeja...
     - Como assim? - ela estava, mesmo, intrigada.
     - Você faria, mesmo, qualquer coisa pela sua vida?
     - Qualquer coisa! - ela insistia em responder sem pestanejar.
     - Namore-me. E este compromisso deverá ser publicamente assumido. Você é uma pessoa pública, quero que convoque a imprensa, e cada revista de fofoca para me exibir como seu novo parceiro.
     Já entre as primeiras palavras, ela assumira, novamente, a expressão de total rejeição. Mas encararia. Mas, a idéia de assumir publicamente um relacionamento com uma coisa tão feia. Ela viraria piada pública.
     - Deus me livre! Jamais!
     - Ele livraria! Se você aceitasse, claro! Mas, você disse o que eu queria ouvir.
     Como num passe de mágica, ele se transformou no homem mais belo que ela já vira. Algo de familiar... Era ele! Ele a matara!
     - Você selou o seu destino. Somente sairá daqui, quando entender o real sentido da palavra beleza! Cuide-se!
     Antes que ela pudesse respirar, percebeu que estava numa sala enorme. Havia espelhos em cada parede, havia espelhos em cada coluna. Uma verdadeira academia, uma penteadeira, inúmeros produtos de beleza e equipamentos afins. E espelhos. Muitos espelhos. Ela via que era ela, em cada espelho. Mas cada espelho mostrava uma face diferente, como estivesse diante de espelhos que a distorcessem. Mas não a distorciam, não, e ela entendeu isso. Era ela, mesma, como ela realmente era.
     É que, a cada espelho, ela via um defeito seu. Não espinhas, verrugas, rugas, pés-de-galinha... Não. Via sua soberba, sua empáfia, sua inveja, sua desonestidade. O maior dos espelhos, sua vaidade, mãe de cada um de seus defeitos.
     No fundo, sabia que, se, um dia, conseguisse ver a mulher por trás daquele monstro horrendo que cada espelho abrigava, se abriria alguma passagem para onde ela pudesse ter paz, finalmente. Mas, por um bom tempo, ela estava aprisionada pelo mais terrível dos monstros: ela mesma.

Pablo de Araújo Gomes, 20 de janeiro de 2010